terça-feira, 23 de junho de 2009

Intolerância à Lactose: Mitos e Realidade (5)

Manifestações Clínicas e Métodos Diagnósticos



Os principais sintomas de intolerância à Lactose são distensão abdominal, flatulência, cólicas intestinais e diarréia, os quais são parcialmente dependentes da capacidade funcional da atividade da Lactase, mas sim, e acima de tudo, estão diretamente relacionados com a quantidade da Lactose ingerida. Ou seja, como se trata de uma reação enzima-substrato, se houver excesso de substrato (Lactose) para ser digerido pela enzima (Lactase) na unidade de tempo e na área de superfície de digestão da mucosa intestinal, os sintomas de intolerância à Lactose deverão surgir algumas horas após a ingestão do leite. Vale ressaltar que a intensidade dos sintomas irá depender estritamente de uma relação diretamente proporcional entre a Concentração de Lactose no alimento/Atividade da Lactase na mucosa intestinal. Dentre todos os sintomas acima referidos, indiscutivelmente, a diarréia é o que apresenta maior risco para o paciente, em especial durante o período de lactente, posto que o leite representa praticamente a única ou pelo menos a maior fonte alimentar da dieta nesta fase da vida. Nestas circunstâncias, caso o diagnóstico não seja estabelecido prontamente, a diarréia pode se tornar crônica acarretando agravo nutricional que pode ser de grave intensidade até mesmo com instalação de acidose metabólica, que pode ser confundida com processo infeccioso sistêmico. Quanto mais tenra for a idade do lactente maiores serão os riscos das complicações nutricionais mais graves (Figuras 1 & 2).

Figura 1- Paciente com diarréia persistente e desnutrição grave com intolerância à Lactose.


Figura 2- Paciente em recuperação clínica e nutricional, já tolerante à Lactose.

É importante assinalar que como se trata de diarréia osmótica, o que, portanto, obedece ao princípio da relação causa-efeito. A Lactose não digerida permanece presente na luz do intestino e aí provoca secreção de água e eletrólitos no sentido organismo-lúmen intestinal, cujo volume de fluido acumulado supera a capacidade de reabsorção de água pelo intestino grosso, sendo eliminado sob a forma de fezes líquidas; ao se suspender a Lactose da dieta a diarréia rapidamente cessará. Assim sendo, uma vez cessada a causa o efeito desaparecerá.

Em pré-escolares e escolares, dor abdominal crônica costuma ser um sintoma predominante de intolerância à Lactose, e até mesmo pequena quantidade do carboidrato, tal como 12 gramas, a qual corresponde à concentração equivalente a um copo de leite (250 ml), pode ser a causa deflagradora do sintoma. Além disso, a Lactose não absorvida resulta em um importante substrato para a flora bacteriana do intestino grosso. As bactérias aí prevalentes metabolizam a Lactose produzindo ácidos graxos voláteis e gases (metano, dióxido de carbono e hidrogênio), os quais causam flatulência (Figura 3).

Figura 3- Produtos de metabolização da Lactose pela flora colônica.

Os ácidos graxos provocam uma diminuição do pH fecal, tornando-o ácido (menor que 6,0), o que pode ser na prática utilizada como uma medida indireta da má absorção da Lactose
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Métodos Diagnósticos

A obtenção de uma história clínica bastante detalhada geralmente permite levantar uma forte suspeita da existência da intolerância à Lactose, a qual pode ser confirmada na maioria das vezes com a eliminação de todas as fontes alimentares contendo Lactose da dieta. No entanto, quando se deseja obter confirmação diagnóstica mais acurada de uma suposta intolerância à Lactose é necessária a realização de uma investigação laboratorial adequada. Atualmente, o exame laboratorial mais confiável, além de não ser invasivo, trata-se do Teste do Hidrogênio no ar expirado. Para que se obtenha resultado fidedigno é necessário que o paciente esteja em jejum de pelo menos 6 horas. O paciente deve ingerir uma quantidade de Lactose, 2 gramas/kg de peso até o máximo de 25 gramas, diluída em uma solução aquosa a 10%. As amostras de ar expirado devem ser coletadas em um recipiente apropriado, um balão devidamente selado, em jejum, antes da ingestão da solução de Lactose, e a cada 30 minutos durante o período de 3 horas, após a ingestão da solução de Lactose. Uma elevação da concentração de Hidrogênio no ar expirado acima de 20 partes por milhão (ppm) sobre o valor de jejum, em quaisquer tempos durante as coletas das amostras de ar obtidas, caracteriza má absorção de Lactose. Alguns fatores podem ser causa de resultados falso-positivos ou falso-negativos. Dentre os falso-positivos destacam-se a coexistência de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (neste caso o pico de Hidrogênio no ar expirado ocorre precocemente, dentro da primeira hora do teste) e as alterações da motilidade intestinal. Dentre os falso-negativos incluem-se o uso prévio de antibióticos (afetam a flora colônica) e a falta de produção de Hidrogênio pela flora bacteriana o que pode ocorrer em até 15% da população. Caso, concomitantemente à caracterização de má absorção ou não, o paciente venha a apresentar sintomas clínicos compatíveis com intolerância à Lactose, este diagnóstico deve ser levado em consideração.

Tratamento

O tratamento da intolerância à Lactose baseia-se única e exclusivamente na eliminação da Lactose da dieta do paciente. No caso dos lactentes deve-se utilizar uma fórmula isenta de Lactose e naqueles indivíduos que fazem uso de dieta sólida eliminar o leite da alimentação, substituindo-o por outros produtos lácteos ricos em Cálcio, porém com baixíssimas concentrações de Lactose, tais como queijos e iogurtes.

Por aqui encerramos as discussões sobre esse tema tão em voga e a partir do nosso próximo encontro iniciarei a discussão a respeito das Síndromes Funcionais Gastrointestinais, tema altamente relevante e atual da nossa especialidade.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Intolerância à Lactose: Mitos e Realidade (4)

3- Intolerância Secundária à Lactose


A intolerância secundária à Lactose surge quando ocorre alguma lesão morfológica na mucosa do intestino delgado afetando a região das microvilosidades (local aonde está presente a Lactase) e, conseqüentemente, causando uma diminuição da atividade da Lactase. Dependendo da intensidade da lesão poderá surgir má absorção da Lactose e, assim, secundariamente aparecerem os sintomas de intolerância à Lactose (Figura 1).

Figura 1- Mecanismo fisiopatológico de produção de diarréia em decorrência de intolerância à Lactose.


A destruição dos enterócitos maduros, localizados no terço superior da vilosidade, leva a substituição destes por células imaturas, cuja capacidade de produção da Lactase é insuficiente para digerir a oferta de Lactose da alimentação.

Dentre as inúmeras causas potenciais capazes de provocar lesão da mucosa do intestino delgado destacam-se as infecções, tanto virais quanto bacterianas, e, nestas circunstâncias os indivíduos mais vulneráveis a estas agressões são os lactentes.

Rotavirus é o principal agente viral causador de diarréia aguda na infância e é conhecida sua capacidade de provocar lesões de variadas intensidades sobre a mucosa do intestino delgado. Inúmeros estudos recentes de meta-análise têm demonstrado que crianças sofrendo de diarréia aguda por rotavirus e que não apresentam grau importante de desidratação podem continuar a receber fórmulas lácteas contendo concentrações habituais de Lactose, sem que ocorram manifestações de intolerância alimentar. Nestes casos a utilização de fórmula contendo Lactose não irá interferir de forma negativa sobre o estado de hidratação, o estado nutricional, a duração da doença ou o sucesso terapêutico. Entretanto, nos lactentes de maior risco, ou seja, aqueles menores de 3 meses ou com algum grau de agravo nutricional, a intolerância à Lactose poderá estar presente e ser um fator importante na perpetuação da diarréia (Figura 2).
Figura 2- Ultramicrofotografia do Rotavirus. Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.

Giardíase, criptosporidíase e outros parasitas do intestino delgado freqüentemente acarretam intolerância à Lactose, em virtude da lesão direta que estes agentes provocam sobre os enterócitos.

Nas comunidades desprovidas dos benefícios do saneamento básico e naquelas populações que vivem em condições de promiscuidade tornam-se especialmente prevalentes as infecções intestinais pelas cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Em particular, as cepas que possuem a capacidade de provocar adesão localizada ou enteroagregativa em cultura de tecido com células HELA são altamente agressivas sobre a mucosa do intestino delgado (Figura 3).

Figura 3- Incubação de Escherichia coli O111 em cultura de células HELA evidenciando nichos da bactéria com aspecto característico de adesão localizada.

Estes agentes afetam principalmente lactentes durante os primeiros anos de vida e devido sua ação fisiopatológica provocam graves lesões na mucosa do intestino delgado e estão freqüentemente associadas a intolerâncias alimentares. As cepas de Escherichia coli enteropatogênicas clássicas, em especial as O111 e O119, possuem a propriedade de produzir as típicas lesões em pedestal, causando total destruição na região das microvilosidades dos enterócitos (Figuras 4-5-6 & 7).

Figura 4- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum (grande aumento) de um paciente portador de diarréia persistente por infecção com Escherichia coli O111 demonstrando a presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com intensa destruição dos enterócitos.
Figura 5- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum, corte semi-fino, de um paciente portador de diarréia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a superfície epitelial do intestino delgado causando destruição das microvilosidades.

Figura 6- Ultramicrofotografia do enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no interior do enterócito.

Figura 7- Ultramicrofotografia do enterócito com a clássica formação em pedestal devido a infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do enterócito e a completa destruição das microvilosidades.

Intolerâncias à Lactose e mesmo aos monossacarídeos da dieta podem estar associadas em altas porcentagens dos casos (em nossa experiência em até 40% dos casos), levando à perpetuação da diarréia com intenso agravo nutricional e elevado risco de morte (Figuras 8 & 9).


Figura 8- Paciente portador de diarréia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 acarretando intensas perdas hidro-eletrolíticas e intolerância alimentar múltipla, tendo necessidade de receber nutrição parenteral total.


Figura 9- O mesmo paciente da figura 8 já em recuperação clínica com capacidade de tolerar fórmula isenta de Lactose, posto que ainda se encontrava intolerante à Lactose.

Crianças portadoras de Enteropatia ambiental sofrem também risco potencial de apresentarem intolerância à Lactose. Estas crianças muito comumente sofrem algum grau de agravo nutricional em virtude do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Bactérias da flora colônica, em especial as anaeróbias como os Bacteróides, quando presentes no lúmen do intestino são capazes de provocar inúmeros eventos fisiopatológicos causando graves lesões à mucosa do jejunal. Em virtude do sobrecrescimento bacteriano vai ocorrer desconjugação e 7α desidroxilação dos sais biliares primários (ácido cólico e quenodeoxicólico) transformamdo-os em sais biliares secundários (ácido deoxicólico e ácido litocólico), os quais são altamente lesivos à mucosa jejunal (Figuras 10-11-12-13-14 & 15).

Figura 10- Visão parcial da favela cidade Leonor, exemplo marcante da ausência de saneamento básico e, portanto, fator fundamental para o surgimento da Enteropatia Ambiental com sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Observar as crianças brincando às margens do córrego, verdadeira cloaca a céu aberto.

Figura 11- Morfologia do intestino delgado em diferentes situações de contaminação ambiental.

Figura 12- Representação esquemática da desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais biliares primários.

Figura 13- Representação esquemática da lesão do intestino delgado e deficiência de Lactase devido ao sobrecrescimento bacteriano.

Figura 14- Material de biópsia de jejuno de um paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando intensa atrofia vilositária e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.Figura 15- Ultramicrofotografia do intestino delgado de paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando importante lesão das microvilosidades, as quais se encontram diminuidas em número e altura.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes desse tema intrigante e desafiador que tantas discussões suscita.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Intolerância à Lactose: Mitos e Realidade (3)

Definições: Intolerância à Lactose – Má Absorção de Lactose – Deficiência de Lactase


Há na literatura médica vários conceitos para caracterizar cada um dos termos acima referidos e que muitas vezes podem trazer confusões diagnósticas e interpretações equivocadas de cada uma dessas denominações. A seguir trataremos de explicitar detalhadamente as diferentes situações observadas na prática diária.

A- Intolerância à Lactose: é uma síndrome clínica caracterizada por um ou mais dos seguintes sintomas: dor abdominal, diarréia, náusea, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de leite ou de substâncias contendo Lactose. A quantidade de Lactose que poderá causar sintomatologia varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da quantidade ingerida, do grau de deficiência de Lactase, e também da forma da substância na qual a Lactose está presente.

B- Má Absorção de Lactose: é um problema fisiológico que pode se manifestar ou não como intolerância à Lactose (ocorrência de manifestações clínicas como anteriormente descritas) e é devida a um desequilíbrio entre a quantidade de Lactose ingerida e a capacidade disponível de Lactase para hidrolisar o substrato (reação enzima x substrato).

C- Deficiência Primária de Lactase: é caracterizada pela ausência relativa ou absoluta da Lactase a qual inicia seu desenvolvimento durante a infância, em idades variáveis, em distintos grupos étnicos, e é a causa mais comum de má absorção de Lactose e de intolerância à Lactose. A deficiência primária de Lactase é também denominada Hipolactasia Tipo Adulto ou Deficiência Hereditária de Lactase.
D- Deficiência Secundária de Lactase: é a deficiência de Lactase que resulta de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como na diarréia aguda, diarréia persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado, ou outras causas de agressões à mucosa do intestino delgado, podendo estar presente em qualquer idade, porém sendo mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.

E- Deficiência Congênita de Lactase: enfermidade extremamente rara, potencialmente letal em épocas que não existiam substitutos para o leite.

F- Deficiência de Lactase do Desenvolvimento: é caracterizada como a deficiência relativa de Lactase observada entre prematuros com menos de 34 semanas de gestação.

Classificação das Intolerâncias à Lactose
1- Deficiência Primária de Lactase
Como já foi anteriormente mencionado cerca de 75% da população global não consegue tolerar a Lactose na vida adulta, posto que a produção de Lactase é determinada por um gene autossômico recessivo LAC*R, o qual acarreta a restrição da produção de Lactase a partir do 5º ano de vida, a qual ocorre de forma progressiva, porém, gradualmente. Embora a deficiência primária de Lactase possa se apresentar de uma maneira relativamente aguda sob a forma de intolerância ao leite, sua instalação é tipicamente sutil ao longo dos anos, surgindo no final da adolescência ou, mais tarde, na vida adulta. A maioria dos indivíduos adultos permanece com apenas 10% da capacidade de produção da Lactase em relação aos níveis observados durante o período de lactentes. É interessante assinalar que mesmo aqueles indivíduos com intolerância à Lactose na vida adulta são capazes de tolerar um copo de leite; entretanto, quando eles ingerem uma quantidade adicional de leite sintomas de intolerância podem surgir.

Pesquisadores da História tem demonstrado que os romanos geralmente utilizavam o leite como purgativos, dando preferência ao leite de égua sobre o leite de cabra, porque o primeiro apresenta maior concentração de Lactose. Da mesma forma na Ásia há comprovação histórica de que os chineses não consumiam leite. Estudos mais recentes demonstram cabalmente que também os habitantes nativos das Américas pré-Colombiana tampouco utilizavam o leite de animais na vida adulta.
Naquelas populações que não possuem tradição do uso do leite na vida adulta, a incidência de má absorção à Lactose alcança taxas que variam de 50 a 100% em todos os grupos étnicos estudados tanto na Ásia oriental, como nos povos nativos do Oceano Pacífico: chineses, japoneses, coreanos, tailandeses, indonésios, filipinos, aborígenes australianos, neo guineanos e nativos das ilhas Fiji. Altas incidências também foram encontradas em inúmeros povos africanos e seus descendentes que vieram para as Américas, tais como os Ibos, Iorubas, Hausas e Fulani da Nigéria; Bantus de Camarões; Congo; Uganda e Zâmbia.

Altas incidências também foram caracterizadas entre os italianos do sul, especialmente em Nápoles, cipriotas gregos, árabes da Jordânia, Síria, Israel e Egito.

A deficiência primária de Lactase afeta de 60 a 80% dos negros norte-americanos e dos judeus Ashkenazi, e aproximadamente 100% das populações nativas da Ásia e das Américas (Tabela 1).
Tabela 1- Prevalência de Deficiência Primária de Lactase e Persistência de Tolerância à Lactose em diversos grupos étnicos.
Portanto, pode-se depreender que a deficiência primária de Lactase é uma condição natural na vida adulta, e, conseqüentemente, muitos indivíduos apresentarão sintomas de intolerância à Lactose se consumirem leite, especialmente em grandes quantidades.

2- Deficiência Congênita de Lactase
Trata-se de uma doença extremamente rara, potencialmente letal, de origem autossômica recessiva, com incidência é de 1:60.000 nascidos vivos, cujos sintomas surgem nos recém-nascidos logo após receberem as primeiras mamadas. Os sintomas típicos são diarréia líquida de característica intratável se o diagnóstico não é suspeitado. Diarréia osmótica com perda dos nutrientes leva à desnutrição, associada à desidratação e acidose metabólica. Substâncias redutoras nas fezes são facilmente detectadas e o pH fecal torna-se ácido. Deve-se retirar a Lactose
da dieta, seguida da conseqüente introdução de fórmula isenta de Lactose. A resposta clínica ocorre poucas horas após a retirada da Lactose da dieta e o desenvolvimento da criança passa a ser normal. Vale enfatizar que esta deficiência enzimática é permanente, e que, portanto, a Lactose deve ser evitada durante toda a vida.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes desse tema intrigante e desafiador que tantas discussões suscita.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Intolerância à Lactose: Mitos e Realidade (2)

Genética da Produção da Lactase e a Hipótese Histórico-Cultural de Tolerância à Lactose na Vida Adulta


Os mecanismos do controle da produção da Lactase tem sido profundamente debatidos ao longo dos anos por antropólogos, cientistas sociais, historiadores, cientistas e médicos. Alguns pesquisadores, baseados em estudos de regulação genética nas bactérias, argumentavam nos anos 1960 que a Lactase era uma enzima induzível pela presença do substrato, ou seja, que a produção da Lactase acreditava-se ser estimulada pela presença da LACTOSE. Baseando-se nesta visão, as populações que não utilizavam o Leite na vida adulta perdiam a capacidade de produzir a Lactase, enquanto que aqueles grupos que consumiam o Leite e seus subprodutos conservavam a capacidade de produzir a Lactase.

Entretanto, estudos bioquímicos colocaram em dúvida esta hipótese, e investigações realizadas com grupos de famílias demonstraram que a produção da Lactase é controlada por um gene autossômico dominante localizado no cromossoma 2. A persistência da produção da Lactase é, portanto, um traço dominante. Os dois alelos passaram a ser denominados de LAC*P para a persistência de produção da Lactase e LAC*R para a restrição da produção da Lactase na vida adulta. O lócus LAC parece ser um gene regulador que reduz a síntese da Lactase pela redução da transcrição do RNA mensageiro. Indivíduos que herdam os alelos LAC*P dos seus pais mantém a produção da Lactase na vida adulta, enquanto que aqueles indivíduos que herdam os alelos LAC*R de ambos os pais deixam de produzir a Lactase na vida adulta. Os heterozigotos receberão diferentes alelos, LAC*P/LAC*R, mas como LAC*P é um traço dominante, a atividade da Lactase mantém-se ao longo da vida adulta e conseqüentemente também sua habilidade para digerir a LACTOSE.

Uma nítida demonstração da hipótese genética de que a persistência da produção da Lactase é um traço dominante foi obtida a partir de um estudo realizado na África envolvendo duas populações distintas quanto à capacidade de digerir a LACTOSE na vida adulta. Foram incluídos no estudo um grupo da etnia Yoruba, reconhecidamente não absorvedores à LACTOSE, um grupo misto Yoruba-Europeus dos quais 44% eram não absorvedores à LACTOSE, e um grupo de Europeus com apenas 22% de não absorvedores. Quando ambos os pais eram não absorvedores toda a progênie resultou não absorvedora; entretanto, quando se deu o cruzamento entre um dos pais, absorvedor à LACTOSE, com um não absorvedor à LACTOSE, ou quando ambos os pais eram absorvedores à LACTOSE, obteve-se como resultado final uma progênie mista (Figura 1).

Figura 1- Pedigree de 3 famílias no Lagos, Nigéria. Os quadrados e as circunferências em branco representam indivíduos do sexo masculino e feminino, respectivamente, Não Absorvedores à LACTOSE. Os quadrados e as circunferências em negro representam indivíduos do sexo masculino e feminino, respectivamente, Absorvedores à LACTOSE. Yoruba (Y), Britânicos (Br), Ibo.


Na era Paleolítica, antes da fase da domesticação dos animais, os lactentes humanos consumiam o Leite das suas mães somente durante o período que abrangia desde o nascimento até o desmame. Após o desmame o Leite deixava de ser um nutriente da dieta do indivíduo. Os seres humanos somente tiveram a oportunidade de obter regularmente o Leite quando os animais selvagens foram domesticados. Atualmente sabe-se que os primeiros animais a serem domesticados foram os carneiros, e este acontecimento data de 9.000 anos antes de Cristo. Entretanto, as primeiras claras evidências aceitáveis da utilização do Leite dos animais foram obtidas na região do Saara e datam de 4.000 a 3.000 anos antes de Cristo, portanto, cerca de 5.000 anos depois do início da domesticação dos animais (Figuras 2 e 3).

Figura 2- Cena de ordenha no Egito, ano 2900 antes de Cristo, encontrada em excavação, qual acredita-se tenha contexto religioso. (Cópia de Simoons, Geographical Review, vol. 61, 1971, copyright da American Geographical Society of New York).
Figura 3- Desenho em rocha na região do Saára (período medieval pecuário, 4.000 a 3.000 antes de Cristo). (Cópia de Simoons, Geographical Review vol.61, 1971, copyright da American Geographical Society of New York).


Logo após o início do hábito do uso dos produtos lácteos ter se desenvolvido, este rapidamente se espalhou por todo o universo. Entretanto, o uso do Leite e dos laticínios não havia sido adotado por todos os povos do Velho Mundo (Europa, Ásia e África) quando da época dos grandes descobrimentos no século XVI (1500). Por exemplo, na África, muito embora inúmeras tribos tivessem hábitos pecuários e fossem capazes de digerir a LACTOSE e se utilizassem do Leite na vida adulta, tais como os Fulani, Hima e Tussi, cerca de 1/3 dos habitantes do continente africano era constituído por indivíduos mal absorvedores à LACTOSE. A região ocidental da África, como por exemplo, habitada pelos povos que viriam a serem trazidos para o Novo Mundo, os Ibo, Yoruba e Hausa, não possuíam hábitos pecuários e apresentavam altas taxas de mal absorvedores à LACTOSE. Vale a pena enfatizar que os povos nativos habitantes das Américas não eram consumidores do Leite e seus derivados na vida adulta. De fato, estudos realizados principalmente nas décadas de 1960 e 1970, envolvendo as mais variadas etnias de populações nativas das Américas, do Norte, Central e do Sul, e seus descendentes demonstraram taxas de aproximadamente 100% de mal absorvedores à LACTOSE em indivíduos adultos.
Por outro lado, os povos do norte da Europa, tais como os escandinavos, britânicos, irlandeses, alemães, holandeses, suíços, polacos, franceses, italianos do norte, espanhóis, e a população branca dos Estados Unidos e Canadá apresentam taxas muito baixas (30% ou menos) de mal absorvedores à LACTOSE. Essa capacidade de digerir a LACTOSE na vida adulta adquirida por esses povos deve-se a uma mutação genética explicada pela hipótese histórico-cultural. Esta hipótese parte da premissa de que durante os estágios precoces da evolução humana, os seres humanos muito provavelmente apresentavam o mesmo padrão de desenvolvimento da atividade da Lactase que os demais mamíferos. Como já foi anteriormente mencionado, admite-se que os lactentes humanos teriam níveis elevados de Lactase no intestino antes do desmame e que a partir deste momento haveria uma queda abrupta a qual persistiria durante toda a vida adulta. Supõe-se que por necessidade de sobrevivência, em especial no norte da Europa, em virtude da dificuldade de obtenção de alimentos devido aos rigores do clima, os habitantes dessa região passaram a utilizar o Leite do gado estabulado, inicialmente em pequenas quantidades, posto que houvesse pouca disponibilidade do mesmo. Quando o Leite tornou-se disponível em abundância, seu consumo passou a ser generalizado e os sintomas de mal absorção à LACTOSE passaram a ocorrer com freqüência; então, várias possibilidades vieram a ocorrer. Em primeiro lugar, foi limitar o seu consumo a níveis toleráveis de absorção. Em segundo lugar, modificar a composição do Leite, processando-o de tal forma a diminuir a concentração da LACTOSE por meio da fermentação, gerando subprodutos tais como o iogurte e queijos. Nenhum desses procedimentos teria sido capaz de impedir o declínio da atividade da Lactase após o desmame, e, assim, o consumo de laticínios per se não deve ter levado à elevação da atividade da Lactase ao longo da vida adulta. Acredita-se, na verdade, que este fenômeno, somente pode ter ocorrido devido a uma seleção genética, de tal forma que surgiram indivíduos de comportamento “aberrante” com altos níveis de atividade da Lactase ao longo da vida, os quais se tornaram favorecidos na luta pela sobrevivência. Estes indivíduos de comportamento “aberrante” que puderam passar a tolerar o Leite em grandes quantidades, com isso também conseguiram desfrutar melhor saúde, adquiriram maior vigor físico, maior capacidade de multiplicação e maior disposição para defender suas famílias contra outros agressores. Finalmente, estas populações do norte da Europa invadiram outros povoados da região, conquistando-os e, assim, disseminaram o gene da capacidade de digerir a LACTOSE, visto que como sabemos esta propriedade é controlada por um gene autossômico dominante. É por esta razão que inúmeros povos descendentes de etnias do norte da Europa, e que se encontram espalhados por todo o globo terrestre, em especial nas Américas e Austrália, apresentam altas taxas de tolerância à LACTOSE, e, conseqüentemente, conseguem consumir o Leite ao longo de toda a vida.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes desse tema intrigante e desafiador que tantas discussões suscita.