quinta-feira, 4 de maio de 2017

Intolerância à Lactose: História, Genética, Prática Clínica, Diagnóstico e Tratamento (Parte 2)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-Gastroped)

  • Prevalência da Persistência da atividade da Lactase na vida adulta

Por outro lado, contrariando as expectativas genéticas naturais de restrição da atividade da Lactase, inúmeras pesquisas têm demonstrado que existem 2 fenótipos geneticamente programados, a saber: “Lactase Restrição” (Hipolactasia) (LR) e “Lactase Persistência” (LP). Vale ressaltar que a LP não está necessariamente condicionada ao consumo diário de produtos lácteos após o desmame.

Figura 16- Representação esquemática da indução de um determinado gene, como por exemplo, no caso da persistência de produção da Lactase.

Em decorrência desta mutação genética há um número significativo de indivíduos adultos que conservam a capacidade de digerir a Lactose, o que representaria uma inovação evolutiva “anormal”.

 Figura 17– Modificação na estrutura cromossômica que possibilitou a persistência da atividade da Lactase na vida adulta em determinadas etnias.

A capacidade que alguns grupos étnicos adquiriram para a Persistência da Lactase após o período da amamentação e que se torna Permanente é explicada por uma mutação genética baseada na “Hipótese Histórico-Cultural”.

      Hipótese Histórico-Cultural

As populações coletoras-caçadoras anteriores ao Período Neolítico (Neolítico ou Período da Pedra Polida:  10.000 A.C. - sedentarização e surgimento da agricultura - 3.000 A.C. - Idade dos Metais) eram intolerantes à Lactose. Estudos genéticos sugerem que as mutações mais antigas associadas com a persistência da Lactase somente alcançaram níveis apreciáveis nos seres humanos nos últimos 6 mil anos.

A persistência da Lactase é um exemplo recente de duas evoluções: a) traço genético e b) traço cultural, domesticação e acasalamento dos animais.

A distribuição geográfica dos indivíduos Lactase Persistente (LP) correlaciona-se fortemente com a difusão da domesticação do gado. Aproximadamente entre 5 e 10 mil anos o haplotipo do gene da Lactase sofreu uma enorme pressão seletiva. Esse período coincide com a disseminação da atividade pecuária. Como a atividade pecuária originou-se na Europa, seus habitantes foram expostos a um aumento da oferta de produtos lácteos contendo Lactose, o que resultou em uma seleção natural positiva.  

A PL na vida adulta desenvolveu-se em 2 áreas geográficas de forma independente:

A.  No norte da Europa, nas regiões do Báltico e do Mar do Norte (Escandinávia, Alemanha e Grã-Bretanha).

Figura 18- Mapa dos diferentes locais aonde os Vikings invadiram ao longo dos tempos.

 Figura 19- Mapa dos territórios percorridos pelos Vikings.

      Razões que justificaram a utilização do leite na Escandinávia, na vida adulta:

1.  Clima extremamente inóspito (frio excessivo e baixa exposição à luz solar reduz a produção de vitamina D pelo corpo).

Figura 20- Glacial da Noruega, entre Oslo e Bergen, um exemplo típico de clima inóspito vivenciado por seus habitantes.

2.          Disponibilidade de Vitamina D e absorção de cálcio.

Figura 21- Vista panorâmica de Bergen, Noruega, no auge do verão nos poucos meses do ano em que as temperaturas são mais amenas.

3. Raquitismo e osteomalacia. Deformidades pélvicas causavam partos mais difíceis: extinção gradual da colônia Viking da Islândia.

4. A mutação LAC*P permitiu que os adultos usassem uma fonte excelente de cálcio, posto que a Lactose facilita sua absorção.

5. O fato do leite ser uma substância líquida, pela facilidade de transporte, proporcionou a possibilidade de que os adultos viessem a consumi-lo em grandes quantidades, o que resultou em uma forte vantagem seletiva. 

 Figura 22- Imagem de um típico guerreiro Viking tolerante à Lactose, cuja carga genética disseminou a PL em todas as terras conquistadas, em especial o norte da Europa.

B.  No norte da África na região do Saara

Em situação geográfica e climática totalmente opostas também surgiram etnias com carga genética PL, e isto ocorreu nas áridas terras da Arábia, Saara e Sudão. Nestas regiões a PL está caracterizada somente nas populações nômades altamente dependentes de camelos, tais como os Beduínos, os Tuareg do Saara, os Fulanis da África Oriental, os Bejas e Kabbabish do Sudão.

Figura 23- Beduínos na região do Saara, outro exemplo de etnia com carga genética PL.

Em contraste, as populações urbanas e agrícolas do entorno, quer sejam árabes, turcos, iranianos ou africanos, apresentam taxas muito baixas de PL.  

· O gene Lactase autossômico dominante e a tolerância à Lactose na vida adulta

Hirschhorn e cols., em 2004, descobriram que a PL se deve à presença de um haplotipo composto por mais de 1 milhão de pares de base de nucleotídeos, incluindo o gene Lactase. A presença deste gene é que determina a PL. Atualmente, este haplotipo pode ser encontrado em 80% dos europeus e dos americanos que possuem ancestrais europeus.

Figura 24- Representação esquemática do gene LAC*P.

A persistência da produção da Lactase é controlada por um gene autossômico dominante, de alta expressão do RNA-m, denominado LAC*P.

Indivíduos que herdam alelos LAC*P dos seus pais mantém a produção da Lactase na vida adulta, enquanto que aqueles que herdam os alelos LAC*R deixam de produzir Lactase na vida adulta. Heterozigotos recebem diferentes alelos LAC*P/LAC*R e mantém a capacidade de digerir a Lactose

Figura 25- Exemplos característicos de fenótipos tipicamente de carga genética LAC*P.


Figura 26- Jovens adultas da região do Tirol, Austria, etnia com elevado percentual de capacidade de tolerância à Lactose.

Figura 27- Crianças em idade escolar da região do Tirol, Austria, etnia com elevado percentual de capacidade de tolerância à Lactose. 

      Benefícios da Persistência da atividade da Lactase
Smith e cols., em 2009 na Inglaterra, investigaram os efeitos dos alelos codificados para LP sobre a saúde das mulheres. Selecionaram de forma randomizada mulheres que possuíam os alelos CC (não produtores de Lactase) e, mulheres que possuíam 1 ou 2 alelos T que indicam LP. Foram analisados inúmeros aspectos destas mulheres, a saber: metabólicos, nível socioeconômico, estilo de vida e taxas de fertilidade.


Figura 28- A Inglaterra também fez parte da invasão Viking.

Os resultados destes estudos mostraram que as mulheres homozigotas para o alelo C apresentaram indicadores de saúde mais desfavoráveis do que aquelas mulheres que apresentaram alelos TC e/ou TT. As mulheres que eram CC relataram taxas mais elevadas de fraturas do colo do fêmur e do punho, bem como de osteoporose e de catarata. Os autores concluíram que os melhores indicadores de saúde das mulheres com alelo T foi beneficiada pela presença da LP.

Figura 29- Jovem tolerante à Lactose.

Figura 30- Idosa tolerante à Lactose.

      Conclusões
Má absorção e/ou intolerância à Lactose deve ser considerada uma condição “normal” nos indivíduos adultos posto que este comportamento ocorre em cerca de 75% da população mundial. Isso se deve porque o gene LAC*R é autossômico recessivo e está programado para a deficiência de Lactase a partir do quinto ano de vida.

Figura 31- Vilarejo na China aonde o consumo de leite não faz parte dos hábitos alimentares dos adultos.

Por outro lado, uma mutação genética baseada na “Hipótese Histórico-Cultural” possibilitou o surgimento do gene LAC*P, autossômico dominante que condiciona a capacidade da persistência da produção da Lactase, ao longo de toda a vida dos indivíduos pertencentes a determinados grupos étnicos. 

Figura 32- Família do norte da Europa aonde o leite é parte integrante e importante alimento dos hábitos alimentares em todas as fases da vida.

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