quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Doença Celíaca, Alergia ao Trigo e Síndrome da Intolerância ao Trigo (parte 2)

               Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Alergia ao Trigo

Um segundo transtorno bem conhecido relacionado à ingestão de glúten em crianças e adultos é a alergia ao trigo, também identificado pela denominação de “Asma do Padeiro”. O trigo é de fato um alérgeno alimentar bastante comum e nos indivíduos predispostos pode induzir uma resposta alérgica tipicamente por um fenômeno IgE mediado, uma reação de hipersensibilidade imediata. Nas crianças pré-escolares e escolares, as reações IgE mediadas pelo trigo podem incluir sintomas gastrointestinais, tais como: náuseas, vômitos, dor abdominal e diarreia. Entretanto, diferentemente do que ocorre na DC o surgimento dos sintomas é geralmente mais rápido, dentro de minutos ou horas após a ingestão do trigo, e pode também incluir envolvimento de órgãos extra-intestinais, tais como a pele (com sintomas de eritema, prurido, urticária) e o sistema respiratório (com sintomas que incluem tosse, sibilos e rinorreia). Anticorpos IgE específicos para o trigo surgem dentro dos dois primeiros anos de vida, mas diferentemente da DC, que é um transtorno permanente, a maioria das crianças a médio e/ou longo prazo, virão a tolerar o trigo, muito embora a alergia possa persistir até a adolescência em uma ínfima minoria de pacientes. Para se estabelecer o diagnóstico de alergia ao trigo é necessária a obtenção de uma detalhada história clínica associada a investigações laboratoriais, e, em muitos casos, é até mesmo necessária a realização de um teste de provocação oral com o trigo. 

Síndrome de Intolerância ao Trigo

A Síndrome da Intolerância ao Trigo (SIT) também reconhecida como a “Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca” (SGSDC) refere-se aos indivíduos que relatam sintomas digestivos e/ou extra intestinais, os quais desaparecem quando o trigo é eliminado da dieta. Estes indivíduos apresentam recidiva dos sintomas quando o trigo é reintroduzido, não apresentam atrofia vilositária da mucosa duodenal, e nos quais foram descartadas DC e AL.

Ellis e Linaker, em 1978, publicaram o caso de uma paciente que se queixava de diarreia e dor abdominal intermitente. A investigação laboratorial não mostrou anormalidades à biópsia do intestino delgado, mas apesar de não ter sido caracterizada a DC, ela foi submetida a uma dieta isenta de glúten, a qual levou ao desaparecimento dos sintomas. Esse foi, ao que tudo indica, o primeiro caso cientificamente reconhecido de SGSDC.

Seguindo-se a essa observação, Cooper e cols., na Suécia, em 1988, publicaram esta síndrome envolvendo 8 mulheres adultas, que sofriam de dor abdominal e diarreia crônica. As investigações laboratoriais excluíram DC, porém, ainda assim, elas foram submetidas a uma dieta isenta de glúten. As pacientes apresentaram uma melhora clínica dramática com o uso da dieta isenta de glúten, e ao serem desafiadas com glúten ocorreu retorno dos sintomas. Biópsias de jejuno realizadas nessas pacientes evidenciaram pequenas, porém significantes alterações na celularidade, que regrediram com a utilização da dieta isenta de glúten. Nenhuma outra alteração imunológica ou clínica que sugerisse DC foi encontrada.

Desde então, a SGSDC permaneceu no esquecimento, e, somente foi “redescoberta” em 2010, por Sapone e cols. Estes autores caracterizaram-na pela presença de sintomas intestinais e extra intestinais relacionados com a ingestão de alimentos contendo glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou AT. Sapone e cols., realizaram biópsia de intestino delgado em pacientes com SGSDC e demonstraram mínimas alterações da mucosa jejunal (Marsh 0-1), enquanto que nos celíacos ocorreu atrofia vilositária subtotal e hiperplasia críptica. A partir deste novo relato da SGSDC, rapidamente um número cada vez maior de artigos passaram a ser publicados, por inúmeros grupos independentes, confirmando que a SGSDC deveria ser definitivamente incluída no espectro dos transtornos relacionados ao glúten. A SGSDC é uma entidade clínica na qual os sintomas são desencadeados pela ingestão do glúten, na ausência de anticorpos celíacos específicos e da clássica atrofia vilositária do intestino delgado observada na DC, com condição variável do HLA e possível positividade da primeira geração de anticorpos antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado, a prevalência de IgA AGA nos pacientes com SGSDC tem se revelado muito baixa (7,7%). É importante salientar que os melhores marcadores sorológicos (anticorpo antitransglutaminase e antiendomisio) para DC têm sempre se revelado negativos nos pacientes com SGSDC. Entretanto, os mais diversos aspectos da epidemiologia, fisiopatologia, espectro clínico e tratamento da SGSDC ainda permanecem obscuros. Vale ressaltar que até o presente momento não se tem conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese desta entidade e nem tampouco encontra-se disponível um marcador bioquímico que possibilite caracterizar seu diagnóstico laboratorial. Os esclarecimentos destes aspectos até o momento não elucidados deverão ser alcançados através de investigações clínicas e laboratoriais utilizando metodologia científica reconhecidamente válida, através de estudos multicêntricos e prospectivos envolvendo a SGSDC. O diagnóstico deste transtorno nutricional se estabelece por meio do teste de provocação que preferentemente deve ser realizado pela técnica duplo-cego, placebo-controlada, o que na prática clínica torna-se extremamente difícil de ser aplicada.

A manifestação clássica da SGSDC é uma combinação de sintomas similares aos observados na Síndrome do Intestino Irritável (SII) incluindo dor abdominal, flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), e manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia, cansaço, dores musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia. Quando os pacientes são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles espontaneamente relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos contendo glúten e o agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGSDC manifesta-se tipicamente por meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor abdominal e diarreia crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos frequentes nas crianças, e nestas últimas o sintoma mais comum tem sido cansaço.
Vasquez-Roque e cols., em 2013, demonstraram que pacientes não celíacos portadores da SII com predominância da variante diarreia, podem desenvolver sintomas gastrointestinais após a ingestão de glúten. Estes pacientes ao receberem uma dieta contendo glúten apresentaram maior número de evacuações por dia, particularmente aqueles cujo genótipo era HLA-DQ2 e/ou DQ8. A dieta contendo glúten mostrou-se associada com um aumento da permeabilidade do intestino delgado e uma significativa diminuição na expressão da zonula ocludens 1 da mucosa colônica. Estes efeitos foram significativamente maiores nos pacientes HLA-DQ2 e DQ8 positivos. Por outro lado, pacientes que receberam dieta contendo glúten versus aqueles que receberam dieta isenta de glúten, não apresentaram alterações significativas sobre o trânsito gastrointestinal ou na morfologia do intestino delgado. Os autores concluíram que o glúten provoca ruptura da barreira de permeabilidade intestinal nos pacientes com SII com diarreia, particularmente naqueles HLA-DQ2 e DQ8 positivos. As alterações na barreira de permeabilidade intestinal permitiram oferecer explanações mecânicas a respeito das observações de que a retirada do glúten da dieta pode provocar alivio dos sintomas nos pacientes portadores de SII com diarreia.

Por outro lado, Biesiekierski e cols., em 2013, investigando pacientes portadores de SII com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se deviam principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis na dieta. Ao eliminar essas substâncias, porém, ainda que mantivessem ingerindo alimentos contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores passaram a utilizar a sigla FODMAPs (fermentable oligosaccharides, disaccharides, monossaccharides and polyols), que significa carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos. Frutanos são polímeros da frutose sintetizados a partir da sacarose e que ocorrem na natureza no mundo vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados na dieta ocidental. Essas substâncias não são digeridas e consequentemente não são absorvidas pelo trato digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso e aí são fermentadas pelas bactérias da flora colônica, sendo transformadas em ácidos graxos voláteis de cadeia média e curta (acético, butírico e propiônico) com alto poder osmótico, bem como acarretando a produção de gases (Metano, Dióxido de Carbono e Hidrogênio). A presença destas substâncias no lúmen intestinal provoca flatulência, dor abdominal e diarreia, em especial nos pacientes portadores de SII (Figura 4).

Figura 4- Representação esquemática das manifestações clínicas.

O trigo é a maior fonte dietética de frutano, e este, além do glúten, é um aspecto que deve ser levado em consideração como mais um fator potencial causador de sintomas, posto que o trigo está presente em praticamente todas as refeições tradicionais do mundo ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão, bolos, biscoitos e etc. Vale salientar que, além do trigo os frutanos estão presentes em inúmeros outros alimentos de uso comum em nossas dietas, tais como: feijão, feijão branco, grão de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola, alho, repolho, alho poró e etc.  Por esta razão, Biesiekierski e cols. propõem que nos pacientes portadores de SII com diarreia e intolerantes aos frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes alimentos (Figura 5).

Figura 5- Representação esquemática da má absorção de frutose. 

Recentemente, o grupo australiano liderado por Halmos e cols., em 2014, ao realizar um ensaio clínico controlado e randomizado demonstraram que reduzindo a ingestão de carboidratos de cadeia curta, que são de muito baixa absorção e/ou oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis (Fermentable oligosaccharides, monosaccharides and polyolsFODMAPS) reduziram significativamente a intensidade dos principais sintomas nos pacientes portadores da SII (Figura 6).


Figura 6- Paciente portadora da SIT antes e após a retirada dos FODMAPs da dieta.
  
A hipótese de que a redução da ingestão dos FODMAPS pode aliviar os sintomas digestivos nos pacientes portadores da SII baseia-se na observação clínica de que uma proporção significativa de pacientes não tolera a ingestão de carboidratos de cadeia curta. Estes carboidratos não são totalmente absorvidos no intestino delgado devido a um deficiente processo de hidrólise (lactose-lactase), excesso de frutose em relação a glicose, ou difusão passiva (alguns monossacarídeos e os polióis). Vale ressaltar que além destes carboidratos, os Frutanos tipo inulina não são absorvidos no intestino delgado e sim fermentados no intestino grosso pela flora bacteriana, e acarretam os seguintes efeitos, a saber: a) sobrecarga osmótica; b) aumento da produção de ácidos graxos de cadeia curta, H2, CO2 e metano pela microflora colônica; c) alteração da motilidade, pois aceleram o trânsito intestinal.

Infelizmente, devido à falta de parâmetros diagnósticos objetivos torna-se difícil conhecer a verdadeira prevalência da SIT. Utilizando-se critérios um tanto quanto subjetivos admite-se que a prevalência da SIT alcança 13% no Reino Unido, 7,3% na Austrália e 0,6% nos Estados Unidos.

Atualmente, a inexistência de marcadores biológicos dificulta sobremaneira estabelecer os critérios diagnósticos da SIT, muito embora como anteriormente referido a presença de anticorpos anti-gliadina estejam presentes com maior frequência neste grupo de pacientes do que em controles sadios, porém sem outras alterações laboratoriais concomitantes. É importante assinalar que o diagnóstico da SIT somente pode ser estabelecido após uma detalhada investigação clínica e laboratorial ter sido consistente para descartar DC.

O tratamento baseia-se fundamentalmente na eliminação do trigo da dieta, porém, a maioria dos pacientes responde de forma altamente positiva quanto ao alívio dos sintomas quando são submetidos a uma dieta com baixo teor dos FODMAPS (Tabela 3).


  
Conclusões

O espectro dos transtornos relacionados ao “glúten” atualmente engloba a DC, a AL e também a recém-chegada SIT.

A DC acha-se muito distante de ser uma enfermidade estática como se pensava ser há 20 ou 30 anos. Atualmente, está se tornando um campo extremamente excitante com novos fluxos de conhecimento, a saber: o papel da genética está sendo melhor compreendido, fatores ambientais, em especial a microbiota, estão sendo revelados, novas propostas de tratamento alternativo estão sendo buscadas e, até mesmo, já há alguma luz no horizonte quanto à perspectiva de cura.

O interesse global na SIT tem se revelado explosivo como pode ser constatado pela pletora das publicações científicas de revisões, editoriais, e a florescente opinião de experts, ao mesmo tempo em que há um enorme interesse na imprensa leiga, sem precedentes, que tem causado uma maciça onda em todo o mundo ocidental dos seguidores das dietas isentas de glúten. Apesar da existência da SIT ser inquestionável, muito trabalho ainda deve ser trilhado para se obter um melhor conhecimento e mais profunda compreensão científica desta entidade. Principalmente a busca de marcadores biológicos precisa ser desvendada, para que se possa ter um diagnóstico de certeza mais confiável em breve futuro. Estamos, portanto, vivendo momentos de muita excitação e muito mais estará por vir!!! 

Nenhum comentário: